Maria Ivanildes Nobre

À Nide - Maria Ivanildes Nobre
Com imensa admiração e gratidão!!

No Central (Colégio Estadual da Bahia), ao lado da Lapa – principal estação de ônibus de Salvador, no antigo bairro da Joana Angélica, encontrava-se um sem número de jovens pobres e negros oriundos dos muitos bairros das periferias da capital baiana. Muitos destes jovens encontravam ali um espaço vivo de liberdade distante dos olhares vigilantes do bairro e dos familiares. Dentre estes estava eu, uma garota que começava a se nutrir da indignação e dos sonhos de uma vida melhor, ao se mobilizar junto com outros na busca por mudanças, desde a escola até projetos mais amplos de transformações sociais. Naquele tempo o sonho compartilhado era por uma sociedade menos desigual. Desejo nascido de uma vida marcada pela experiência das inúmeras ausências e injustiças sociais que preenchiam nossas vidas.

O percurso ao Central era feito todos os dias num transporte de ônibus extremamente precário, que levava do Subúrbio Ferroviário de Salvador, no bairro de Alto de Coutos, em média uma hora e meia até o ponto final da Lapa (de onde seguia até a escola). O cansaço era eminente, porém os laços ali construídos, os afetos compartilhados e o destino esperado gerava o contentamento. Na escola o encontro com os amigos e parceiros vindos de outros nortes da cidade era o ápice deste contentamento. O mesmo não serviu como combustível para muitos colegas que, no passar dos dois anos estudando ali, foram desistindo dos estudos e desaparecendo como fumaça ao vento.

Por que começo esta carta por aqui, localizando um cenário escolar no centro de Salvador? Porque nele conheci pessoas extremamente marcantes em minha trajetória. Foi aí que produzi relações fraternais que me acompanham até os dias de hoje, passados mais de vinte e cinco anos. É deste cenário que destaco e coloco em relevo uma dessas pessoas. Uma mulher que marcou profundamente minha história e que faço com este breve escrito a minha homenagem.

A história continua assim: Num belo dia, primeiro do ano letivo do segundo colegial, em 1990, espanto-me pela primeira fez com uma figura destoante de tudo que havia vivenciado até aquele momento no Central. Uma mulher “estranha” entrou na sala de aula, trazendo a tiracolo uma bolsa de cordão branca meio encardida e nos braços uma pilha de livros, seguros com o afeto destinado a quem carrega um filho. Ela estava com uma camisa branca “social” de botão e calça jeans larga, muito larga. No rosto não trazia nenhuma maquiagem, apenas um

olhar de grande vivacidade e um sorriso largo que envolvia todo o ambiente. Era uma mulher jovem. Posicionou-se de frente para a turma, de pé, firme e serena... Jovens curiosos, estávamos todos ansiosos para saber quem era aquela mulher.

_ Bom dia! Chamo-me Nide. Vamos trabalhar juntos durante este ano.

“Trabalhar juntos”! Essa era uma assertiva que destoava de tudo que havia ouvido até então entre os professores.

Nide! Era assim que se reconhecia. Seu nome: Maria Ivanildes Nobre, nome pelo qual nunca admitiu ser chamada. Era a professora de sociologia, uma jovem professora que dava ali, naquele momento, início a sua trajetória como educadora no ensino médio. Sua forma de falar e as coisas que dizia destoavam de toda uma ideia, uma forma e uma prática que já havia sido induzida a pensar que era o modelo ideal do ser professora.

Suas provocações, piadas e palavrões, ao mesmo tempo, que assustavam, seduziam a pensar o mundo, a vida e as relações sociais de uma sociedade ainda sob o fantasma da ditadura de forma radical. Suas ideias, muitas vezes, atingiam meu espírito com a mesma força com que me toca o som dos atabaques. Era uma forma de ver e produzir o mundo de forma livre, ativa e transformadora. Os dias, as semanas, os meses se sucediam e neste percurso a certeza a cada instante reafirmada de que tudo que acreditava ser questionador e revolucionário era mesmo o tom do estabelecido e do conservador.

Nide mostrava que a radicalidade do pensamento e da prática precisavam ser feitos de forma efetiva. Sinalizava que o caminho para uma ruptura com o estabelecido exigia a construção de outras sensibilidades. Indicava que era preciso a (au)transformação permanente, sem perder de vista as outras pessoas no mundo. A dureza com que colocava as questões e mostrava o quanto estávamos ainda na linha da reprodução assustava. Porém, assustava mais ainda perceber que sua dureza não estava destituída de afeto e ternura.

A aproximação para além da sala de aula foi inevitável. Percebi que a mulher que se desenhava e se definia aos meus olhos era a imagem do que eu desejava ser: inteligente, crítica, sensível, solidaria e humana. Antes de tudo, forte e lutadora. Sua determinação se mostrava aos meus olhos sempre atentos e ganhava abrigo no meu afeto que a cada dia só aumentava. Nide passou a ser a imagem de uma mãe intelectual, de grande força espiritual. A inspiração foi

inevitável e nela se mostrava o que eu queria ser. Queria ser uma professora. Desejei ainda mais: ser socióloga como ela. Nem sabia muito bem o que isso significava, em termos de trabalho. Entendia que havia sido a Sociologia a responsável por produzir uma pessoa como aquela. Por isso, queria passar também por aquela formação que nutria a alma e ação daquela mulher. Desse encontro nasceu outro desejo que se tornou um projeto e um grande desafio: ir para a Universidade. Ela havia me despertado para a existência e possibilidades de outros caminhos, diferentes do que parecia ser o predestinado aos jovens como eu: finalizar (quando muito) o ensino médio colegial e ir para o mercado de trabalho do comércio e serviços.

O ano acabou e nos anos seguintes continuei a vê-la quase todos os dias. Eu, assim como outros colegas, seguia em peregrinação até uma das salas onde ela estaria dando aula só para compartilhar acontecimentos, ouvir suas palavras de crítica e incentivo, bem como para receber o abraço renovador do dia.

Não foram as Ciências Sociais, a Sociologia que produziram uma pessoa como ela. Descobri isso tempos depois. Apenas trouxeram experiências e conhecimentos que contribuíram para tal. A vida percorrida por outros caminhos e a forma de tomar o mundo para si, e principalmente de se deixar tomar pelo mundo haviam sido os responsáveis por criar aquela mulher. Então, percebi que o caminho era o de se colocar no mundo com a serenidade e a força com que ela nos exige e está atenta para aos seus sinais.

À Nide, uma mulher sertaneja, militante da vida e de espírito vibrante, registro minha imensa admiração e gratidão pelo legado. Gratidão maior a vida por ter me permitido chegar tão perto dela, uma honra sem tamanho.

Um pensamento que bem a definia naqueles tempos:
“É preciso ser duro, mas sem perder a ternura, jamais” Che Guevara